Rotoscopia: de Branca de Neve a Waking Life

O que é

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Rostoscópio. Imagem: Wikimedia Commons.

Basicamente é uma técnica que transforma a filmagem em animação. A pessoa é filmada ou fotografada, um desenho é feito com base nessa captura e essas ilustrações são sobrepostas para formar uma sequência em movimento. O termo rotoscopia vem do nome do equipamento que facilitou a utilização da técnica.

O rotoscópio foi inventado por Max Fleischer para fazer com que as animações parecessem mais reais e suaves, já que, até então, eram desenhadas livremente, baseadas somente na imaginação e não correspondiam muito à fluidez humana. Essas últimas eram mecânicas e não agradavam visualmente: os desenhos do início do século XX eram assistidos por curiosidade e não faziam sucesso.

O equipamento, que foi patenteado em 1917, transferia a imagem da atuação por meio de um projetor em um vidro, onde era colocado um papel e o animador desenhava sobre a projeção, quadro a quadro, seguindo o movimento realizado pelos atores. Depois cada imagem era fotografada e juntas formavam um vídeo.

A invenção foi utilizada pela primeira vez por Max e seu irmão Dave em 1915 (leia mais sobre a história dos irmãos aqui) no desenho Koko The Clown, em que Dave era filmado vestido de palhaço. O resultado foi mais que satisfatório e mostrava o potencial da técnica, que a partir daí passou a ser utilizada em diversos desenhos animados pelo estúdio da família (os Estúdios Fleischer), como Betty Boop, As Viagens de Gulliver e Popeye.

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Betty Boop. Imagem: Animator Mag.

Todavia, o aparato deveria ser usado com cautela porque causava uma certa “agitação” no filme, devido aos desvios nos frames. Por isso o animador precisava ser muito habilidoso para diminuir ao máximo esse efeito. Além disso, deve ser empregado a partir das necessidades do desenho e desejos do criador, porque em virtude do realismo, há pouco espaço para o movimento exagerado como esticar (braços, pernas) ou gerar uma aparência de cartoon.

Com o tempo, a rotoscopia extrapolou o espaço dos desenhos mais infantis e invadiu outros universos como o de videoclipes, comerciais, jogos (no famoso Prince of Persia, por exemplo) e de filmes com temática adulta.

Na música, o método foi utilizado pelos Beatles no clipe de “Lucy in the Sky with Diamonds” e “Yellow Submarine”, por Kanye West e principalmente no vídeo de “Take on Me” do A-HA. Para dar uma ideia do esforço envolvido no processo de animação, esse último vídeo contém 3000 frames desenhados e foram mais de 16 semanas de trabalho intenso.

No campo cinematográfico, os projetos mais conhecidos pela rotoscopia são O Expresso Polar (The Polar Express, 2004), O Homem Duplo (Scanner Darkly, 2005) e Waking Life (Idem, 2001), sendo os dois últimos do mesmo diretor, Richard Linklater (de Escola de RockAntes do Amanhecer e Boyhood). Em O Homem Duplo, a produção envolveu em média 50 ilustradores e 18 meses, além da contratação de guias visuais que auxiliavam de forma a manter os traços uniformes durante o filme todo. Já em Waking Life, a animação permitiu que o espectador entrasse na viagem alucinante proposta pelo enredo da obra. Isso mostra que mesmo com as novas tecnologias, a técnica continua sendo uma ferramenta importante como recurso estilístico e para passar uma mensagem através daquele aspecto visual.

Como funciona

A equipe de produção filma uma cena com atores, normalmente em um estúdio, os frames desse vídeo são retirados e colocam um papel um pouco transparente em cima, onde fazem o contorno, pintam, digitalizam cada desenho e juntam todos. Dessa forma, a sequência terá movimento.

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Processo de ilustração. Imagem: Sarsblogg.

Cada segundo de um vídeo equivale a 24 ou 25 frames, então para um minuto de animação é necessário trabalhar em pelo menos 1440 desenhos. Felizmente, a rotoscopia pode ser feita atualmente com a ajuda dos computadores, o que torna o processo um pouco menos exaustivo.

A transição para o digital começou no início dos anos 90 com um software chamado Colorburst, que editava imagens como o Photoshop faz. Ele permitiu que um artista produzisse o mesmo que oito com a técnica manual e levando um quarto do tempo, porque o programa pode usar o frame anterior como base para o próximo, fazendo com que não seja necessário desenhar cada um do zero.

O mais importante passou a ser a pintura e ela possibilitou a criação de máscaras (mattes) para combinar elementos de duas cenas diferentes, mas também para remover alguém da filmagem, substituir o fundo, apagar cabos ou microfones que vazaram… Posteriormente esse uso foi substituído pelo hoje conhecido como cromaqui.

Uma outra aplicação do método é a criação dos efeitos especiais em si, como foi usado em Os Pássaros (The Birds, 1963) de Alfred Hitchcock e em todas as sequências de Star Wars para a criação dos sabres de luz, adicionando manualmente uma máscara no cabo segurado pelos atores, que depois era contornado por uma linha com brilho colorido em cada frame.

Praticamente qualquer software de manipulação de imagens permite fazer uso do recurso a partir da decomposição do vídeo, que não precisa estar em boa qualidade, em frames. É possível criar camadas e sobrepô-las em cada quadro, podendo alterar cores e contornos da filmagem original em qualquer escala.

Apesar de ainda consumir bastante tempo, os resultados da rotoscopia são incomuns e por isso, normalmente compensam o esforço. O processo se torna ainda mais singular quando se leva em conta que cada artista que desenha (ou pinta, ou anima objetos) sobre os mesmos frames do mesmo material obtém um resultado completamente distinto porque o traço é algo pessoal, e esse elemento também ajuda a contar a narrativa (mais grossos, mais delicados, mais fechados), dá vida ao personagem. Por esse motivo cada filme é diferente do outro e de certa forma único, são uma composição do estilo particular dos criadores que trabalharam nele.

Um exemplo das inúmeras possibilidades de fazer rotoscopia está nesse vídeo:

Disney

Você alguma vez já imaginou como a Disney fazia para que os personagens de animação se parecessem tanto com seres humanos reais? Pois rotoscopia é a resposta!

Os irmãos Fleisher causaram certo incômodo nos estúdios Disney com a popularidade dos seus novos desenhos e Walt decidiu usar a novidade em sua criação inédita: A Branca de Neve (Snow White and the Seven Dwarfs, 1939), o primeiro filme de animação americano. A produção era um risco artístico e financeiro, na qual não funcionaria a técnica antiga, então apostaram na rotoscopia para gastar menos tempo e dinheiro. Mesmo assim, a obra completa foi composta por mais de 250.000 desenhos, entre os livres e rotoscopados.

Fleisher considerou processar a Disney por violação de patente, todavia, os advogados dele descobriram que uma companhia, antes da oficialização, havia criado um aparelho similar ao rotoscópio. Ainda que tivesse o direito sobre a invenção, Fleisher acabou perdendo o interesse em recorrer à Justiça ao tomar conhecimento sobre a máquina anterior.

O método não foi usado pelos desenhistas de Walt à maneira dos Fleisher, mas como uma referência para ajudar na visualização dos movimentos, no início ou término das ações, criando desenhos-chave que ficariam entre os que foram elaborados pela animação usual (livre). O resultado foi um movimento fluído, sem deixar de ser uma animação.

Os gestos da Branca de Neve saíram da atuação de Marjorie Belcher, uma estudante do Ensino Médio, que depois ficou conhecida por conta dos filmes de musicais em que atuou. No início, a modelo seria um guia somente para reproduzir cenas de dança nos desenhos, depois optaram por estender o uso, já que o efeito gerado por animadores olhando suas expressões faciais no espelho (base para as expressões dos personagens) não era ideal, porque eles não eram bons atores.

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                                                           Branca de Neve e Marjorie Belcher. Imagem: Walt Disney Studios.

Os passos da dançarina foram planejados e coreografados para fazer com que a personagem não se destacasse em relação aos demais (desenhados à mão livre), por isso executava movimentos propositalmente excessivos. Para ser bem sucedida, a rotoscopia deve ser utilizada com o cuidado de manter uma uniformidade e equilíbrio na cena. Por outro lado, a referência de um modelo vivo possibilitou uma consistência que seria impossível obter de outra maneira: as ilustrações à mão devem ser executadas sempre pela mesma pessoa para ficarem parecidas e não destoarem, porém em um filme de longa duração mais de um artista trabalha naquele personagem e tomar como base alguém real permite uma aparência unificada e harmoniosa.

Contudo, o estúdio tentou esconder o uso da referência. Na estreia da obra, Belcher sentou afastada da plateia e foi instruída a não comentar sua função na produção; ela nem entendia direito como se deu o processo de animação, e só foi compreender anos depois em uma exposição sobre o filme.

O produto final pareceu bom o bastante para que a técnica fosse utilizada nas próximas produções: A Bela Adormecida, Pinóquio, Cinderela, A Pequena Sereia, A Bela e a Fera, Aladdin, Pocahontas, Lilo & Stitch, O Rei Leão, Peter Pan, Alice no País das Maravilhas e tantos outros, constantemente usando um modelo para os personagens de aparência menos cartunizada, quase sempre os humanos, que eram os mais difíceis de serem animados.

No Brasil

A rotoscopia, apesar de não ser tão conhecida pelo nome no Brasil, já foi utilizada em abertura de novela, clipes, em curta-metragem e tem previsão de ser de empregada ainda mais.

No final de 2015 estreou em São Paulo, durante a  Mostra Internacional de Cinema, o filme Zoom, com Gael Garcia Bernal e Mariana Ximenes como protagonistas. Um terço do longa teve o trabalho da rotoscopia. Ao passo que o projeto Oceano, realizado por alunos de Audiovisual da Universidade de São Paulo, foi exibido oficialmente em novembro de 2016.

Oceano é dirigido por Renato Duque, um apaixonado por animação, que decidiu adotar a rotoscopia porque assim poderiam adicionar poderes mágicos aos personagens e criar os cenários, sem abrir mão das atuações reais. A decisão foi tomada a partir de inúmeros testes que procuravam o visual que se encaixava no enredo, e Duque acredita ter feito a escolha certa: a ilustração por esse método entrega uma aparência madura que não pode ser adquirida de outra forma.

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Rotoscopia em Oceano. Imagem: Oceanodiario.

Por outro lado, preferiram que os cenários fossem pintados à mão com tinta aquarela, como nos animê e desenhos da Disney, porque passa uma imagem de antiguidade, mas também harmoniza com a rotoscopia.

A produção, que passou de dois anos por ter começado do nada, se tornou um aprendizado coletivo. Como ninguém da equipe, formada por 30 pessoas, era experiente, tudo foi realizado na base da experimentação; a cada segundo de vídeo surgem desafios e a forma como lidam com eles tem um efeito diferente no material. O grupo ainda teve que buscar recursos financeiros para ajudar no orçamento.

Duque conta que o aspecto mais importante no processo é ter paciência. Com a escolha da rotoscopia, o trabalho e preocupações são duplos (gravação e animação), e talvez até fosse mais barato ter usado outra técnica (por não gastar com lápis, tinta etc.), porém dessa maneira o resultado é exatamente o desejado.

Confira a proposta de Oceano:

Controvérsia

Há muita argumentação acerca do questionamento se rotoscopia é ou não animação. Os mais críticos alegam que a técnica é para preguiçosos e seria um atalho ou trapaça por não se basear totalmente na imaginação. Don Graham, um antigo animador da Disney, falou uma vez que quem não tinha habilidade suficiente para desenhar sozinho usava a ferramenta. Enquanto outros se defendem dizendo que artistas muito bons a utilizavam porque podiam ir além da cópia: o modelo vivo era a base sobre a qual elaboravam, alterando até a proporção.

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É importante citar que o método diminuiu o trabalho de produção excessivo, e se negar a usar ferramentas facilitadoras nos levaria ao ponto das inúmeras cópias de desenho livre no papel, algo que era pouco produtivo e o resultado nem sempre era o esperado.

Mais um ponto de desaprovação decorre do fato que os personagens destoam na aparência e na ação entre os que foram modelados pela rotoscopia e os desenhados à mão livre. Porém, esse efeito só seria perceptível se os operadores não fossem desenhistas de excelência.

O segredo da técnica sempre foi um bom julgamento para os detalhes, não é somente traçar tudo o que se vê, mas selecionar o que deve ser mantido na ilustração e o que é informação desnecessária, que fica de fora. Ela viabilizou a criação de personagens verossimilhantes, com realismo no movimento, e não tão desajeitados como antigamente, ainda incorporando criatividade. E vale salientar que o resultado muitas vezes é de difícil reprodução através da filmagem real (como superpoderes e outros efeitos).

Embora o processo não seja muito conhecido além do grupo de especialistas em cinema, ele tem sido usado há anos e de diversas maneiras, podendo ser executado em casa, de forma simples ou mais sofisticada, nos maiores estúdios de Hollywood, fazendo aplicação dos mesmos conceitos. A rotoscopia possibilitou a evolução de muitos dos efeitos especiais que conhecemos hoje e criou experiências únicas em animação.

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Por: Isabella Galante